Arnaldo, o carrancudo

Kadi Medeiros
2 min readDec 6, 2022

Apresento a vocês Arnaldo, o carrancudo.

Dissecado por quarenta anos trabalhados no banco, conserva hoje os vícios de uma vida amarela.

Não gosta de música, não gosta de animais, não gosta de crianças, de bagunça, de barulho, de demonstrações públicas de afeto, ou de televisão.

Fumava dois maços de cigarro por dia. Hoje fuma três e meio, “afinal, se é pra morrer, mesmo…”.

A esposa serve as refeições à mesa às 6h, às 12h, às 17h e às 21h. Entre elas, café. Volta e meia, Dona Dina o convence a “botar uns biscoito pra dentro, pra amenizar essa cafeína toda, né?”.
(Certa feita, a senhora ofereceu-lhe um chá. Recebeu como resposta um olhar de canto e uma levantada de sobrancelha seguida de uma bela franzida na testa. Não ousou mais.)

Tomava três térmicas de café por dia, lendo três diferentes jornais. Hoje toma uma e meia, porque “não tem motivo pra realmente ficar acordado” e lê meio jornal, porque dá azia.

Não vê motivo, também, pra conversar. Lembrar os velhos tempos é tão inútil quanto ridículo. Planejar o futuro é tão ridículo quanto inútil. E o presente é tão ridículo, que é inútil pensar sobre ele.

Os filhos e suas famílias visitam Dona Dina e Arnaldo a cada quinze dias. Arnaldo não sorri e não fala. Resmunga. Separa um pouco os lábios vezenquando, pra reclamar do volume da televisão.

O genro e as noras às vezes duvidam, mas os filhos juram que ele tem uma ponta de coração que ainda bate.

O pequinês que Lis (Elis Cristina, na voz do pai) carrega, pula do colo direto aos pés da poltrona batida tão logo é aberta a porta. Encontra aconchego nos magros pés que ali repousam.

Laurinha (que para o avô é Laura), Cris (Cristiano), Dani (Danilo) e Naldinho (onde já se viu um primogênito com esse diminutivo ridículo?) pulam à poltrona, um por vez, e o enchem de beijos. Há rumores que dos velhos braços já até saiu um semiabraço.

Uma vez por mês, abre mais a boca, pra perguntar quem é que vai assar o churrasco e se Andina não vai convidar logo o vizinho, porque é falta de educação chamar em cima da hora pra essas coisas.

Pela madrugada, todos devidamente recolhidos, Arnaldo senta-se à sua poltrona, aquece os pés naquela bola de pêlos, toca um LP do Louis Armstrong, fecha os olhos e lembra. Planeja. Pensa. Adormece ali.

Vinte minutos depois, em meio ao silêncio da sala, ouve-se uma batida ritmada. Talvez uma pontinha que ainda funcione. Um coração que ainda bata.

Apresento a vocês Arnaldo, o carrancudo.

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kadi medeiros
dezembro.2013

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