Feliz Aniversário
Que difícil é celebrar a vida em meio à morte, né?
Acho que a gente esquece que a morte é parte da vida.
Não é à toa que celebramos nossos mortos.
Um velório. Um enterro. Um ritual de cremação.
O espalhar das cinzas naquele lugar (onde?)
Aliás, são tantas decisões.
A burocracia da morte serve também pra nos lembrar que estamos vivos
Junta documentos, vai no cartório, tira certidão, confere tudo, comunica as pessoas (quem?), escolhe o melhor ritual, prepara o local (qual?), separa a roupa mais adequada, decide a nova morada, é de bom tom servir alguma coisa (o quê?), abraça os amigos, re-encontra familiares distantes, vê parentes próximos que a vida — a vida — afasta e, nossa, a gente só se vê nessas situações, né (quais?)
Aniversários, casamentos, batizados, formaturas. Velórios.
Celebrações da vida.
Marcos que a gente inventa pra lembrar que a gente vive.
Lembrar que a vida é um mais do que café da manhã almoço e janta
um pouco mais que bater ponto, preencher planilhas, atender cliente
um pouco mais que assistir a aulas, virar noites fazendo trabalho, escrever artigos
um pouco mais que beber, ir ao cinema, pedalar
um pouco mais que acordar
viver
dormir
A vida muda quando a gente se despede de alguém,
porque ele mudou de plano, foi pro céu, virou estrelinha,
ou vai virar comida pra fungo ou, só, pó
ou mudou de país e esqueceu de voltar
Não porque a gente pare de tomar café ou de preencher planilhas
A gente se despede e quando vê tá virando noites fazendo trabalho, indo ao cinema. Acordando. Vivendo. Dormindo, até.
Então a gente comemora aniversário
Casa
Tem filhos. Batiza os filhos dos outros
Pega o diploma e festeja
A gente celebra a vida.
Marcos que a gente inventa pra lembrar que a gente vive.
É nessas celebrações. também, que nos pesam mais as ausências
de quem partiu
e esqueceu de voltar
Mas somos teimosos.
A gente teima
e celebra mesmo assim.
Atualiza documentos, faz convites, contrata bufê, escolhe a melhor roupa, decide o ritual mais adequado, abraça os amigos, reencontra familiares
Não é fácil celebrar a vida em meio à morte.
A gente tende a esquecer que a morte é parte da vida.
E, então, em meio a ausências e despedidas,
em meio a almoços, pontos, artigos, pedaladas,
a gente acorda e vive
A gente inventa marcos pra lembrar que a gente aqui
[por enquanto.
[enquanto não nos despedimos
e esquecemos de voltar
[enquanto não somos ausência
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kadi medeiros
janeiro, 2023