Feliz Aniversário

Kadi Medeiros
2 min readJan 12, 2023

Que difícil é celebrar a vida em meio à morte, né?

Acho que a gente esquece que a morte é parte da vida.

Não é à toa que celebramos nossos mortos.

Um velório. Um enterro. Um ritual de cremação.
O espalhar das cinzas naquele lugar (onde?)

Aliás, são tantas decisões.
A burocracia da morte serve também pra nos lembrar que estamos vivos

Junta documentos, vai no cartório, tira certidão, confere tudo, comunica as pessoas (quem?), escolhe o melhor ritual, prepara o local (qual?), separa a roupa mais adequada, decide a nova morada, é de bom tom servir alguma coisa (o quê?), abraça os amigos, re-encontra familiares distantes, vê parentes próximos que a vida — a vida — afasta e, nossa, a gente só se vê nessas situações, né (quais?)

Aniversários, casamentos, batizados, formaturas. Velórios.

Celebrações da vida.
Marcos que a gente inventa pra lembrar que a gente vive.

Lembrar que a vida é um mais do que café da manhã almoço e janta
um pouco mais que bater ponto, preencher planilhas, atender cliente
um pouco mais que assistir a aulas, virar noites fazendo trabalho, escrever artigos
um pouco mais que beber, ir ao cinema, pedalar
um pouco mais que acordar
viver
dormir

A vida muda quando a gente se despede de alguém,
porque ele mudou de plano, foi pro céu, virou estrelinha,
ou vai virar comida pra fungo ou, só, pó
ou mudou de país e esqueceu de voltar

Não porque a gente pare de tomar café ou de preencher planilhas

A gente se despede e quando vê tá virando noites fazendo trabalho, indo ao cinema. Acordando. Vivendo. Dormindo, até.

Então a gente comemora aniversário
Casa
Tem filhos. Batiza os filhos dos outros
Pega o diploma e festeja

A gente celebra a vida.
Marcos que a gente inventa pra lembrar que a gente vive.

É nessas celebrações. também, que nos pesam mais as ausências
de quem partiu
e esqueceu de voltar

Mas somos teimosos.
A gente teima
e celebra mesmo assim.

Atualiza documentos, faz convites, contrata bufê, escolhe a melhor roupa, decide o ritual mais adequado, abraça os amigos, reencontra familiares

Não é fácil celebrar a vida em meio à morte.

A gente tende a esquecer que a morte é parte da vida.

E, então, em meio a ausências e despedidas,
em meio a almoços, pontos, artigos, pedaladas,
a gente acorda e vive

A gente inventa marcos pra lembrar que a gente aqui

[por enquanto.

[enquanto não nos despedimos
e esquecemos de voltar

[enquanto não somos ausência
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kadi medeiros
janeiro, 2023

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