Sensório

Kadi Medeiros
2 min readApr 24, 2023

Não se pode fazer nada, Antônio!

Não se pode fazer o quê?

Nada! Não posso beber, não posso fumar, não posso foder (NÃO POSSO FODER, ANTÔNIO!)

Mas, Betina, a gente não fode?

Fode, Antônio! Mas não conta. Não posso nem mesmo foder.

Aliás, Betina, tu fode com meio mundo…

Ai, Antônio, não fode! Eu não posso vestir calças, saias curtas demais também não posso. Não posso sentar de perna aberta, não posso cruzar as pernas como tu.

Mas, Betina, tu faz tudo isso…

Não posso botar chinelos, botas não posso botar, botar sandálias tampouco. “Botar”, não, né? “Calçar”. Porque não se pode falar errado. Se bem que falar corretamente demais também não se pode. Não posso falar, Antônio!

Mas que que tu quer falar?

Quero falar, Antônio! Quero falar do mundo, quero falar de mim, quero falar das coisas. Há quanto tempo o mundo não me ouve, Antônio? Há quanto tempo não se ouvem gritos nas praças, o nome da Betina, a minha voz, há quanto tempo não se ouve?

O mundo tá cheio de ego, já, Betina. Já basta de ego pro mundo. Enquanto não se tem o que dizer pra ele, o que de útil tu tem a dizer pro mundo? Se é pra encher o mundo de si, que se fique em casa. Quieta. Vai ler.

Lê pra mim?

O que tu quer que eu leia, sua maluca?

Qualquer coisa. Até os romancinhos mais bestas na tua voz são lindos e cheios de significado. Acho que o que tem significado mesmo é a voz das pessoas. Os livros são cheios de letras e pontos e números. São cheios de letras e pontos e números soltos. O que dá significado pra eles mesmo é a voz das pessoas, Antônio. Acho que eu devia declamar. Devia cantar. Mas que diabo, Antônio! Não posso nem falar!

Desiste dessa ideia de falar, Betina. Vai lá sortear um livro na estante.

Que livro?

E faz diferença? Traz um Drummond, que eu te faço gozar.

.

.

.

kadi medeiros

abril.2015

--

--